sexta-feira, 10 de julho de 2009

FIM DE TARDE

Lisboa, sete da tarde de um dia de Verão.

Bica e água numa esplanada interior das Avenidas Novas, para espairecer o espírito e descansar as pernas.

O olhar despreocupado mas sempre curioso espraiava-se ora em redor, ora bem perto, observando sem pressas nem intenções tudo o que alcançava.

Noutra mesa ali ao lado, mãe e filho. Ela, trintona a saber-se bem torneada, estava de perna traçada a deixar entrever a coxa roliça. Lia uma revista. O perfil da cara era cortado por uma farripa de cabelo que lhe pendia até junto do queixo, automaticamente sacudida sempre que o vento a empurrava para a boca e olhos. Na mesa repousavam a mala – preta e alforjada – de napa reluzente e um copo alto meio de sumo.

A inevitável mosca de café (prima da da TV) fazia temerárias incursões pela mesa em direcção ao copo, levantando e pousando consoante os movimentos da mulher.

O miúdo, quatro a cinco anos, abandonara a cadeira e cirandava pelas restantes mesas com um carro de bombeiros na mão. Ao contrário de antigamente, este funcionava a pilhas e o seu guincho sobrepunha-se ao das ambulâncias que volta e meia passavam no outro lado da Avenida. Tinha os olhos grandes, pretos e pestanudos, numa cara bem desenhada. Na sua expressão adivinhava-se uma voluntariedade bem conseguida, confirmada pelas evoluções continuadas na esplanada e a ausência voluntária da mãe, mergulhada na leitura (ou talvez não).

Quando o miúdo passou de novo, soprei-lhe um olá de mansinho, que resultou! A curiosidade foi mais forte que o apito dos bombeiros!
Parou, mirou-me de alto a baixo com aqueles olhos grandes, pretos e pestanudos, e disparou:
- O meu avô também tem cabelos brancos mas não bebe café. Diz que faz mal pra dormir.
- Sim??!
- Bebe refresco… e não tem barba! Porque é que tu tens barba?
- Porque gosto.!
- E porque é que tu gostas?
- E porque é que o teu avô não tem barba?
- Não sei…
- Pergunta-lhe!!!
- Não posso…
- Porquê?
- Tá a dormir no hospital e a mãe diz que eu não posso lá ir agora.

E dito isto, zarpou para nova volta serpenteante pelas mesas da esplanada, antes que lhe retorquisse algo e evitando-me o embaraço de ficar momentaneamente sem resposta.

A mãe, que fingia não ter ouvido a conversa, com mais uma sacudidela da tal farripa de cabelo que teimava em cair para a cara, mirou-me de soslaio mastigando um murmúrio azedo e com um tom pouco simpático chamou:

- Martim, já para aqui e bico calado!

Voltou à revista sem mudar de página (devia ler devagar, devagarinho, se calhar com os olhos desfocados do artigo) e o Martim continuou as suas evoluções coleantes ignorando o chamamento. Aguardei os acontecimentos, mas não houve reacção maternal.

Detive-me a pensar: Se fosse comigo, a minha Mãe tinha posto os pontos nos ii, o carro dos bombeiros ficava imediatamente de férias prolongadas e eu “de trombas” sentado a seu lado. Seria uma chatice para mim naquele momento, mas sabia-se logo quem mandava ali e porquê. Os “Martim” de então, que aprenderam a crescer com respeito nas esplanadas da vida, podem hoje estar em qualquer lado sem tirar o sossego a ninguém. Quando muito, são incomodados.

Fui de repente interrompido por enorme estardalhaço. Segui o barulho e dei com o empregado de mesa estatelado no chão, bandeja para um lado, cacos e líquidos para o outro! O Martim, sentado no empedrado da esplanada e com um joelho esfolado, berrava que nem um possesso em coro com o guinchar permanente do carro dos bombeiros, encravado com a queda.

Tudo isto perante o total alheamento dum tenro casal de adolescentes demasiado ocupado num prolongado beijo de Verão, o sorriso complacente de uns e de troça de outros. Como que a destoar, alguém ajudou o funcionário a levantar-se e quando este se dirigia para o miúdo, surge a mãe trintona que lia a revista de perna traçada e, de dedo em riste, zurziu os ouvidos ao atónito e ainda meio combalido empregado:
- Oiça lá, ó seu idiota, você já viu o que fez ao meu filho, não é capaz de ver por onde anda seu parvalhão?

Prontos, como soe dizer-se, filmado não seria tão perfeito!

Devagar, devagarinho (como aquela mãe trintona fizera com a leitura da revista) levantei-me, lancei um último olhar àquele cenário batido por um resto de sol em tons de ouro velho, fui lá dentro pagar a despesa e voltei costas àquele fim de tarde.

Acontece que o meu médico disse há uns tempos para não me enervar.

Com um sorriso forçado, desta vez fiz-lhe a vontade. Na realidade, naquele filme não passava dum figurante ocasional.


Luís Silva Rosa
(Jul/2009)

Nota: Que fim de tarde tão cheio de realismo e fantasia em simultâneo!! Espectacular Luís!!
Fugindo um pouco à politica...não deixa de retratar a sociedade e a EDUCAÇÃO...ou falta dela!!

4 comentários:

M. Lourdes disse...

Belo texto! Estou mesmo a ver a "cena".
Depois, daqui a uns tempos, o Martim, e tantos outros igualmente Martins, serão alunos cujos professores ocuparão o papel do dsgraçado empregado. A culpa foi dele, será depois do profersor!
Mas eu, felizmente, já não serei professora do Martim.
Tenho pena pelos meus colegas mais novos!
M. Lourdes

Isabel Preto disse...

Assim acontece em todo o lado...nhenhum sossego, em lado nenhum devido ás tropelias de crianças dessas e de mães ausentes:))

Anabela Magalhães disse...

É uma história de gente mal educada... e nós conhecemos tantas, infelizmente!

Reverendo Bonifácio disse...

Ausente?
Bom era que o estivesse. Sem o respaldo de mães que só estão ausentes perantes os deveres que têm mas aparecem logo, como por encanto, logo que seja para exigir aos outros aquilo que lhes compete a elas fazer, esses Martim's não cresciam tão malcriados como são.
Luís, foi um quadro digno do Realismo de Renoir! Obrigada