Lisboa, sete da tarde de um dia de Verão.
Bica e água numa esplanada interior das Avenidas Novas, para espairecer o espírito e descansar as pernas.
O olhar despreocupado mas sempre curioso espraiava-se ora em redor, ora bem perto, observando sem pressas nem intenções tudo o que alcançava.
Noutra mesa ali ao lado, mãe e filho. Ela, trintona a saber-se bem torneada, estava de perna traçada a deixar entrever a coxa roliça. Lia uma revista. O perfil da cara era cortado por uma farripa de cabelo que lhe pendia até junto do queixo, automaticamente sacudida sempre que o vento a empurrava para a boca e olhos. Na mesa repousavam a mala – preta e alforjada – de napa reluzente e um copo alto meio de sumo.
A inevitável mosca de café (prima da da TV) fazia temerárias incursões pela mesa em direcção ao copo, levantando e pousando consoante os movimentos da mulher.
O miúdo, quatro a cinco anos, abandonara a cadeira e cirandava pelas restantes mesas com um carro de bombeiros na mão. Ao contrário de antigamente, este funcionava a pilhas e o seu guincho sobrepunha-se ao das ambulâncias que volta e meia passavam no outro lado da Avenida. Tinha os olhos grandes, pretos e pestanudos, numa cara bem desenhada. Na sua expressão adivinhava-se uma voluntariedade bem conseguida, confirmada pelas evoluções continuadas na esplanada e a ausência voluntária da mãe, mergulhada na leitura (ou talvez não).
Quando o miúdo passou de novo, soprei-lhe um olá de mansinho, que resultou! A curiosidade foi mais forte que o apito dos bombeiros!
Parou, mirou-me de alto a baixo com aqueles olhos grandes, pretos e pestanudos, e disparou:
- O meu avô também tem cabelos brancos mas não bebe café. Diz que faz mal pra dormir.
- Sim??!
- Bebe refresco… e não tem barba! Porque é que tu tens barba?
- Porque gosto.!
- E porque é que tu gostas?
- E porque é que o teu avô não tem barba?
- Não sei…
- Pergunta-lhe!!!
- Não posso…
- Porquê?
- Tá a dormir no hospital e a mãe diz que eu não posso lá ir agora.
E dito isto, zarpou para nova volta serpenteante pelas mesas da esplanada, antes que lhe retorquisse algo e evitando-me o embaraço de ficar momentaneamente sem resposta.
A mãe, que fingia não ter ouvido a conversa, com mais uma sacudidela da tal farripa de cabelo que teimava em cair para a cara, mirou-me de soslaio mastigando um murmúrio azedo e com um tom pouco simpático chamou:
- Martim, já para aqui e bico calado!
Voltou à revista sem mudar de página (devia ler devagar, devagarinho, se calhar com os olhos desfocados do artigo) e o Martim continuou as suas evoluções coleantes ignorando o chamamento. Aguardei os acontecimentos, mas não houve reacção maternal.
Detive-me a pensar: Se fosse comigo, a minha Mãe tinha posto os pontos nos ii, o carro dos bombeiros ficava imediatamente de férias prolongadas e eu “de trombas” sentado a seu lado. Seria uma chatice para mim naquele momento, mas sabia-se logo quem mandava ali e porquê. Os “Martim” de então, que aprenderam a crescer com respeito nas esplanadas da vida, podem hoje estar em qualquer lado sem tirar o sossego a ninguém. Quando muito, são incomodados.
Fui de repente interrompido por enorme estardalhaço. Segui o barulho e dei com o empregado de mesa estatelado no chão, bandeja para um lado, cacos e líquidos para o outro! O Martim, sentado no empedrado da esplanada e com um joelho esfolado, berrava que nem um possesso em coro com o guinchar permanente do carro dos bombeiros, encravado com a queda.
Tudo isto perante o total alheamento dum tenro casal de adolescentes demasiado ocupado num prolongado beijo de Verão, o sorriso complacente de uns e de troça de outros. Como que a destoar, alguém ajudou o funcionário a levantar-se e quando este se dirigia para o miúdo, surge a mãe trintona que lia a revista de perna traçada e, de dedo em riste, zurziu os ouvidos ao atónito e ainda meio combalido empregado:
- Oiça lá, ó seu idiota, você já viu o que fez ao meu filho, não é capaz de ver por onde anda seu parvalhão?
Prontos, como soe dizer-se, filmado não seria tão perfeito!
Devagar, devagarinho (como aquela mãe trintona fizera com a leitura da revista) levantei-me, lancei um último olhar àquele cenário batido por um resto de sol em tons de ouro velho, fui lá dentro pagar a despesa e voltei costas àquele fim de tarde.
Acontece que o meu médico disse há uns tempos para não me enervar.
Com um sorriso forçado, desta vez fiz-lhe a vontade. Na realidade, naquele filme não passava dum figurante ocasional.
Luís Silva Rosa
(Jul/2009)
Nota: Que fim de tarde tão cheio de realismo e fantasia em simultâneo!! Espectacular Luís!!
Fugindo um pouco à politica...não deixa de retratar a sociedade e a EDUCAÇÃO...ou falta dela!!
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4 comentários:
Belo texto! Estou mesmo a ver a "cena".
Depois, daqui a uns tempos, o Martim, e tantos outros igualmente Martins, serão alunos cujos professores ocuparão o papel do dsgraçado empregado. A culpa foi dele, será depois do profersor!
Mas eu, felizmente, já não serei professora do Martim.
Tenho pena pelos meus colegas mais novos!
M. Lourdes
Assim acontece em todo o lado...nhenhum sossego, em lado nenhum devido ás tropelias de crianças dessas e de mães ausentes:))
É uma história de gente mal educada... e nós conhecemos tantas, infelizmente!
Ausente?
Bom era que o estivesse. Sem o respaldo de mães que só estão ausentes perantes os deveres que têm mas aparecem logo, como por encanto, logo que seja para exigir aos outros aquilo que lhes compete a elas fazer, esses Martim's não cresciam tão malcriados como são.
Luís, foi um quadro digno do Realismo de Renoir! Obrigada
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