Por Santana Castilho *
Algo sério terá que acontecer neste país para nos livrarmos de tanta leviandade e incompetência
O Governo resolveu fechar 500 escolas do 1.º ciclo do ensino básico, por terem só 20 alunos. No ano passado e pela mesma razão, prometeu exterminar 4500, quase 60 por cento das existentes então. Anunciou ainda a morte de mais 400, sempre com o olho no alvo: 20. Até nas universidades, 20 deu o mote: cursos com menos de 20 alunos têm vindo a ser liminarmente pulverizados. Porquê 20? Por que se finam 20 e subsistem 21? Tratem os esotéricos das razões, que só podem ser cabalísticas. Vejamos, por ora, premissas e consequências do que está na mira do Governo.
Portugal tem um problema seriíssimo de desertificação do interior e de perda alarmante de vitalidade demográfica. Este problema não se combate, certamente, fechando escolas, maternidades e centros de saúde. Também não se soluciona mantendo-as abertas, a qualquer preço, até ao último resistente. Por isso, a racionalização da rede escolar, como pomposamente o Governo classifica as suas medidas arbitrárias, deveria ser corolário do planeamento do país, a longo prazo. Na ausência de tal referencial estratégico, as intervenções seguidas são meros expedientes para poupar trocos com as aldeias. Entre muitos, dois elementos de ponderação são esmagadores: temos 40.000 professores sem emprego, cuja formação significou um investimento da ordem dos 1200 milhões de euros; e temos uma injustificável dependência alimentar do exterior porque não valorizamos a agricultura. Qualquer orientação de futuro para Portugal passa pelo incremento dos níveis de formação das pessoas e pela modernização e valorização da agricultura, para que deixemos de importar o que comemos. Só estes dois factores de análise, tratados por governantes humanos e cultos, pô-los-ia a trabalhar no sentido de fazer aumentar as populações do interior em vez de as gazear com DDT tecnocrático.
Em muitos locais, o fecho da escola fará desaparecer o derradeiro serviço público ainda aberto. Aumentará o número de crianças de tenra idade apartadas diariamente da família, algumas deslocadas pela segunda vez. Invocando falta de condições nas escolas de origem e em nome duma igualdade que os promotores destas políticas não permitiriam que fosse aplicada aos seus próprios filhos ou netos, centenas de crianças serão obrigadas a sair de casa de madrugada e a percorrer todo o concelho de autocarro.
Em 2003, um decreto-lei, o n.º 7, mandou que em cada concelho se elaborasse uma carta escolar. O objectivo era iniciar o reordenamento da rede nacional das escolas, por recurso ao conhecimento local. Onde estão esses documentos, que careciam de aprovação das assembleias municipais? Não era o PS, agora no governo, adepto da regionalização? Os cidadãos têm o direito a falar, mas não o direito a serem ouvidos. Esmagados pela realidade do andar para trás e amedrontados pela bancarrota anunciada, estão à mercê do imediatismo de quem governa. Numa democracia autêntica, os cidadãos têm uma consciência forte dos seus deveres e dos seus direitos e os governantes respeitam-nos. Mas quando à fragilidade dessa consciência se junta o convencimento messiânico de quem manda, a democracia reduz-se a simples retórica de hemiciclo.
A ignorância do primeiro-ministro classifica de criminosa a manutenção das pequenas escolas. Mas é ele o criminoso pedagógico, não só quando as fecha cegamente mas quando, do mesmo passo, cria centros escolares que poderão albergar uma multidão de 3000 alunos, dos 5 aos 18 anos. Não cabe no âmbito desta crónica fazer uma citação bibliográfica dos inúmeros estudos sobre as consequências das instituições de ensino de tamanho desumano, como estas que envaidecem Sócrates. Mas existem, são unânimes nas conclusões e permitem prever o que se segue: aumento exponencial da violência escolar; gradual perda do sentido de pertença à sua escola por parte dos alunos; diminuição imediata dos custos com salários de professores e consequente aumento, a prazo, dos custos por aluno; aumento pernicioso da competição entre docentes e, numa palavra, retrocesso no clima organizacional da escola pública.
A insanidade que domina a gestão educacional é diluviana: a ministra dos sorrisos acha avançado que um cábula passe do 8.º para o 10.º ano sem frequentar o 9.º, enquanto um estudante sério não tem tal direito; uma arquitecta da Parque Escolar foi além da sua chinela e veio ensinar aos indígenas como eu, professores há mais de 40 anos, o que é uma escola de futuro, uma "learning street", como lhe chama (PÚBLICO de 7.6.10), "... uma escola descentrada da sala de aula, em que os alunos se espalham por espaços informais, com os seus computadores portáteis, cruzando-se com os professores na biblioteca..."; e uma inspecção moribunda e inútil terminou o inquérito às circunstâncias que rodearam o suicídio do professor Luís concluindo "que não há factos merecedores de censura jurídica disciplinar que justifiquem a instauração de procedimentos disciplinares", mas recomendando "uma resposta legalmente adequada e célere às participações apresentadas por todos os elementos da comunidade educativa", o que significa reconhecer que se incumpriu a lei quando o malogrado Luís se queixou, em vão, das sevícias de que se sentia vítima, mas que não vale a pena responsabilizar ninguém.
Algo sério terá que acontecer neste país para nos livrarmos de tanta leviandade e incompetência.
Algo sério terá que acontecer neste país para nos livrarmos de tanta leviandade e incompetência
O Governo resolveu fechar 500 escolas do 1.º ciclo do ensino básico, por terem só 20 alunos. No ano passado e pela mesma razão, prometeu exterminar 4500, quase 60 por cento das existentes então. Anunciou ainda a morte de mais 400, sempre com o olho no alvo: 20. Até nas universidades, 20 deu o mote: cursos com menos de 20 alunos têm vindo a ser liminarmente pulverizados. Porquê 20? Por que se finam 20 e subsistem 21? Tratem os esotéricos das razões, que só podem ser cabalísticas. Vejamos, por ora, premissas e consequências do que está na mira do Governo.
Portugal tem um problema seriíssimo de desertificação do interior e de perda alarmante de vitalidade demográfica. Este problema não se combate, certamente, fechando escolas, maternidades e centros de saúde. Também não se soluciona mantendo-as abertas, a qualquer preço, até ao último resistente. Por isso, a racionalização da rede escolar, como pomposamente o Governo classifica as suas medidas arbitrárias, deveria ser corolário do planeamento do país, a longo prazo. Na ausência de tal referencial estratégico, as intervenções seguidas são meros expedientes para poupar trocos com as aldeias. Entre muitos, dois elementos de ponderação são esmagadores: temos 40.000 professores sem emprego, cuja formação significou um investimento da ordem dos 1200 milhões de euros; e temos uma injustificável dependência alimentar do exterior porque não valorizamos a agricultura. Qualquer orientação de futuro para Portugal passa pelo incremento dos níveis de formação das pessoas e pela modernização e valorização da agricultura, para que deixemos de importar o que comemos. Só estes dois factores de análise, tratados por governantes humanos e cultos, pô-los-ia a trabalhar no sentido de fazer aumentar as populações do interior em vez de as gazear com DDT tecnocrático.
Em muitos locais, o fecho da escola fará desaparecer o derradeiro serviço público ainda aberto. Aumentará o número de crianças de tenra idade apartadas diariamente da família, algumas deslocadas pela segunda vez. Invocando falta de condições nas escolas de origem e em nome duma igualdade que os promotores destas políticas não permitiriam que fosse aplicada aos seus próprios filhos ou netos, centenas de crianças serão obrigadas a sair de casa de madrugada e a percorrer todo o concelho de autocarro.
Em 2003, um decreto-lei, o n.º 7, mandou que em cada concelho se elaborasse uma carta escolar. O objectivo era iniciar o reordenamento da rede nacional das escolas, por recurso ao conhecimento local. Onde estão esses documentos, que careciam de aprovação das assembleias municipais? Não era o PS, agora no governo, adepto da regionalização? Os cidadãos têm o direito a falar, mas não o direito a serem ouvidos. Esmagados pela realidade do andar para trás e amedrontados pela bancarrota anunciada, estão à mercê do imediatismo de quem governa. Numa democracia autêntica, os cidadãos têm uma consciência forte dos seus deveres e dos seus direitos e os governantes respeitam-nos. Mas quando à fragilidade dessa consciência se junta o convencimento messiânico de quem manda, a democracia reduz-se a simples retórica de hemiciclo.
A ignorância do primeiro-ministro classifica de criminosa a manutenção das pequenas escolas. Mas é ele o criminoso pedagógico, não só quando as fecha cegamente mas quando, do mesmo passo, cria centros escolares que poderão albergar uma multidão de 3000 alunos, dos 5 aos 18 anos. Não cabe no âmbito desta crónica fazer uma citação bibliográfica dos inúmeros estudos sobre as consequências das instituições de ensino de tamanho desumano, como estas que envaidecem Sócrates. Mas existem, são unânimes nas conclusões e permitem prever o que se segue: aumento exponencial da violência escolar; gradual perda do sentido de pertença à sua escola por parte dos alunos; diminuição imediata dos custos com salários de professores e consequente aumento, a prazo, dos custos por aluno; aumento pernicioso da competição entre docentes e, numa palavra, retrocesso no clima organizacional da escola pública.
A insanidade que domina a gestão educacional é diluviana: a ministra dos sorrisos acha avançado que um cábula passe do 8.º para o 10.º ano sem frequentar o 9.º, enquanto um estudante sério não tem tal direito; uma arquitecta da Parque Escolar foi além da sua chinela e veio ensinar aos indígenas como eu, professores há mais de 40 anos, o que é uma escola de futuro, uma "learning street", como lhe chama (PÚBLICO de 7.6.10), "... uma escola descentrada da sala de aula, em que os alunos se espalham por espaços informais, com os seus computadores portáteis, cruzando-se com os professores na biblioteca..."; e uma inspecção moribunda e inútil terminou o inquérito às circunstâncias que rodearam o suicídio do professor Luís concluindo "que não há factos merecedores de censura jurídica disciplinar que justifiquem a instauração de procedimentos disciplinares", mas recomendando "uma resposta legalmente adequada e célere às participações apresentadas por todos os elementos da comunidade educativa", o que significa reconhecer que se incumpriu a lei quando o malogrado Luís se queixou, em vão, das sevícias de que se sentia vítima, mas que não vale a pena responsabilizar ninguém.
Algo sério terá que acontecer neste país para nos livrarmos de tanta leviandade e incompetência.
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